Eles passarão, eu passarinho: a liberdade é o poema da vida

Escrever uma coluna sobre o papel do Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal é perseguir sempre as travas à liberdade. Basta uma rápida consulta às escolas penais para notar que o veio de evolução da teoria da pena está na direção de um caminho civilizatório que indica ser o fim da privação da liberdade a chegada distante. Procura-se, com a evolução das ciências penais, a busca pela mais bem acabada justificação para a imposição da pena, com argumentos cada vez mais sofisticados. Se toda chegada é também uma partida, devemos ter o start da jurisdição na consideração de que a negativa da liberdade é, em si, uma violência — ou, no mínimo, a confirmação de uma. Não se olvida que também essa violência possa ser legítima, de um Estado que busca, por algum meio, garantir a estabilidade do meio social, mas essa questão precisa ser elucidada sob o ponto de vista do sentir humano num país que escolheu como núcleo axiológico de sua Constituição a dignidade da pessoa humana.

Recentemente, a Primeira Turma, no Habeas Corpus 178.777 (relator o ministro Marco Aurélio, decisão por maioria, j. 29.09.2020) assentou, nos termos do voto do relator, ser soberano o pronunciamento do Conselho de Sentença que absolve o réu com fundamento no quesito genérico do parágrafo 2º do artigo 483 do Código de Processo Penal — ainda que a resposta à pergunta (“o jurado absolve o réu?), esteja completamente dissociada da prova produzida no processo-crime. O colegiado concluiu ser incompatível com a absolvição a apelação da acusação por alegada (pelo Ministério Público ou por assistente de acusação) “decisão manifestamente contrária à prova dos autos”.

O caso revela exatamente o sentido humanista que deve pautar a evolução do Direito Penal: ainda que presente a materialidade e comprovada a autoria, o Júri, composto de magistrados pares do acusado, pode reconhecer que a situação em jogo merece clemência. Não há nada mais humano que a expressão desse sentimento diante de um crime.

No voto condutor, Sua Excelência o ministro Marco Aurélio fez ver que “o quesito versado no dispositivo tem natureza genérica, não estando vinculado à prova. Decorre da essência do Júri, segundo a qual o jurado pode absolver o réu com base na livre convicção e independente das teses veiculadas, considerados elementos jurídicos e extraprocessuais”. Esses elementos extraprocessuais são justamente a razão de existir o julgamento pelo Tribunal popular. Pode o jurado reconhecer-se no réu, aventando a possibilidade de que, diante de semelhante situação, poderia reagir de maneira próxima. Adotar isso como possibilidade jurídica a impedir novo julgamento é uma notável evolução para o implemento das relações sociais desejáveis. Telles Jr., do ponto de vista da filosofia do direito, já havia ressaltado que:

“Cada ser humano possui seu próprio universo cognitivo, isto é, possui um conjunto ordenado de conhecimentos, uma estrutura cultural, que é seu próprio sistema de referência, em razão do qual atribui a sua significação às realidades do mundo. Toda realidade pode ser objeto de conhecimento. Mas o conhecimento de uma realidade está sempre condicionado pelo sistema de referência do sujeito conhecedor.”[1]

Ora, não há nada mais justo do que ser julgado por jurados que vivem próximos da realidade do contexto criminoso alvo do julgamento e saberão, com um sistema de referências mais bem calibrado para aquela situação, estabelecer a melhor significação àquele delito. Inexiste campo para sobrepor a isso o julgamento de um Tribunal, em apelação, desqualificando a visão adotada pelo Conselho de Sentença. A pergunta contida no dispositivo é de natureza obrigatória e a resposta afirmativa não implica — e nem poderia — nulidade automática do júri.

A resposta “sim” expressa, portanto, a percepção inequívoca do jurado, concedendo a clemência. Como bem assentou o ministro Gilmar Mendes em outra ocasião, “A clemência compõe juízo possível dentro da soberania do Júri, ainda que dissociada das teses da defesa” (RE 982.162, relator o ministro Gilmar Mendes, j. 31.8.2018), e, ante o preceito versado no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da Carta Política — “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: […] a soberania dos veredictos” —, não há margem para dúvida quanto a essa soberania.

O máximo que a dicção “manifestamente contrária a prova dos autos”, prevista no artigo 593, inciso III, alínea “d”, comporta é a anulação da decisão do Conselho de Sentença ante vício no procedimento. O ministro Marco Aurélio, no Habeas Corpus 80.115 (relator o ministro Néri da Silveira, j.24.04.2001), observou que “manifestamente” é advérbio de modo, reservado a situações extravagantes, “quando se percebe, até mesmo, que o veredicto restou formalizado num quadro de perplexidade maior e, quem sabe, até mesmo mediante certa pressão existente no local”. Ou seja, à acusação estão preservados tanto o direito ao recurso quanto a dialética processual, contanto que seja o caso dessa estrita hipótese procedimental.

Aliás, o direito ao recurso — garantia precípua do condenado — não pode se voltar contra ele, sob pena de fazermos da regra penal pura sofisma, estabelecendo que, ao assumir um direito fundamental assume-se também um ônus (fundamental?). O raciocínio acusatório não fecha: produz uma ilusão de verdade, que, embora simule regra lógica, é inconsistente e enganoso. Quanto a isso, Vasconcellos ensina que:

“(…) o direito ao recurso se concretiza ao imputado no processo penal, impondo o cabimento de ampla revisão sobre a condenação. Por outro lado, não há a referida consagração à parte acusadora, o que autoriza a diminuição do seu poder impugnativo. E, nesse sentido, coloca-se tendência de fragilização da concepção bilateral dos recursos, introduzindo-se hipóteses exclusivas e distintas amplitudes de reexame”.[2]

Em breve, o Supremo terá a chance de se pronunciar em sede de repercussão geral sobre o tema, no julgamento do ARE 1.225.185. Votaram em ambiente virtual os ministros Gilmar Mendes (relator), Celso de Mello e Marco Aurélio. O processo teve pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.

O Júri é instrumento fundamental numa sociedade que busque se compreender. Defender a soberania do veredicto absolutório neste caso é, ao mesmo tempo, defender não apenas o réu, mas também o jurado que, exposto a um crime contra a vida alheia, se compadeceu. No final da reta que enfrentamos rumo ao humanismo das penas, estará sempre a liberdade, como o olhar de Quintana sobre a sociedade, a predizer: “Todos esses que aí estão /Atravancando meu caminho, /Eles passarão… / Eu passarinho!”.

TELLES JUNIOR, Goffredo. Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 9. Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 227.

VASCONCELLOS, Vinicius G. Direito ao recurso no processo penal. 2ed. RT, 2020. p. 94

Compartilhar

Share on facebook
Share on google
Share on twitter
Share on linkedin
Share on pinterest
Share on print
Share on email